Autonomia no Porto
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É inevitável. A Escolha do Vasco sobre o País Basco em Santo Ildefonso, e a sorte de lhe calhar o número 404 na porta (aquele número que nunca encontramos na internet) sujeitam-se muito a piadas, mas sobretudo são um bom auspício. São uma campanha silenciosa sobre algo que foi pensado.
Espero sinceramente que seja um muito bom augúrio na região, onde apesar dos dividendos já estarem a ser colhidos, a tradição ainda impera (e muito), em pratos que poderão até ser inovadores na sua apresentação, ou no espaço em que são servidos, mas a base, essa é sempre a clássica.
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Regime de pré-abertura, ainda em afinações (se é assim sem afinações, o que será depois das mesmas estarem feitas).
As boas vindas, são à Base de Bageiras 2009, um brinde ao Bernardo, que ajudava o Mário Sérgio, no fazer da Quinta.
Os snacks começam com uma interpretação de um bolinho de bacalhau, esse regionalismo, neste caso uma versão piscícola de "scotish egg", e com troca de galinha por codorniz.
Segue-se a sapateira, a fazer lembrar o verão em Dezembro, com a cebola pickle a servir de crocante, o creme a dar a untuosidade, a sapateira a trazer o mar.
A sopa reconfortante, num tártaro de peixe de fundo (que no fundo da taça estava), com um creme de legumes, filtrado até à transparência.
Troca-se o copo para uma coisa muito especial. Bota 62, Palo Cortado, Navazos. Idade estimada 50-60 anos. Jerez. Um fortificado, mas acido ao mesmo tempo. Complexo até dizer chega, de descrição...bem...sem descrição. Foi mais uma pergunta: Isto vai emparelhar com o quê?
Duo de parmesão (rezingão: pergunto-me se o teste com São Jorge de 24 ou 36 meses não valeria a pena. Produto nacional). A parte mais alta, um dente de alho, reduzido aos seus açucares em sabor e textura, prolongada cocção, passagem por cal (que os incas descobriram e chamaram nix-ta-ma-li-za-ção, apesar de utilizarem principalmente no milho) e o revestimento a queijo. Uma mousse. No mais baixo, o queijo através da tosta crocante de base, o filete de atum, a barriga de porco derretida a maçarico por cima (na memória a Sala de Despiece em Madrid, com o Rolex, ou a pancetta e cereja). Guloso.
Do vinho velho para o novo, continua-se a toques de Kopke 2014. Com os dois copos na mão o primeiro toque requer àgua e esquecimento. Este é bastante jovem e equilibrado de gosto fácil. Talvez o mais fácil de toda a refeição.
Segunda sopa. Asiática desta vez. Do caldo mais escuro, saem peónias, trevos (nenhum de quatro folhas) e trompetas da morte. Por cima uma gema curada, através da deposição de seis horas em açucar, que depois também passou pelo maçarico. A sensação engraçada de levar uma gema a perder humidade, mas sem a cozer, e depois fazer com que o seu exterior fique crocante e quebradiço. O primeiro pensamento partilhado à mesa foi sobre como misturar um leite creme queimado com uma sopa. Depois procurei afastá-lo, porque a imagem, não estava a ligar com os sabores que eram ora subtis ou punjentes, consoante a erva que vinha à boca.
Em seguida uma das estrelas da noite: Cavala, pickles e pepino. Acompanha um Gin Sour específico. A combinação dos sabores fortes da cavala enquanto matéria prima, a diversidade e natureza dos pepinos utilizados, os ácidos utilizados para intensificar ainda mais e as espumas acompanhantes, tudo parece conjugar. Não é o mar. Não é a Ásia. Será eventualmente a Nazaré, na conjugação entre a pobreza dos alimados, com as hortas da zona Oeste. É bom.
Do Portugal Rural para a Àsia tropical. Acompanha com infusão de curcuma tépida. Agradável, de pedir copos extra, sabores a Terra tão mas tão reconfortantes.
De baixo para cima, a montanha constitui-se pelo creme das cabeças de carabineiro, a sala de manga verde picante a seguir, que levam as gambas cruas do Algarve por cima e depois um granizado de caril, feito no 1-2 da PacoJet que habita à direita do fogão, lá ao fundo. Estalidos na cabeça. Glândulas a salivarem.
Mudamos para Vinha Paz 2013. Pede coisas mais sérias.
Aparece o tamboril. Ou apenas a sua bochecha. Liga com os nabos grelhados, o fígado de galinha e as nabiças crocantes. Se calhar não liga. Eventualmente será um devaneio, uma surpresa. O sabor limpo do tamboril suplantado pelos fígados, o nabo limpa sempre tudo, as nabiças adicionam a textura. Não será um favorito, mas acaba por ser fácil de gostar dele apesar de tudo.
Apoteose. Só o facto de se comer com As "rocks" do Nuno Mendes, já é qualquer coisa. Cutelaria puramente manual, desembrulhada à mesa de dentro do seu estojo de couro, como um kit de facas de cozinha. Peso e corte. Mas qualquer coisa é servir língua de vaca. Um naco inteiro dela! Com puré de aipo, trufa e cantarelos. Aqui fecham-se os olhos. Aqui há memórias de sempre, há aldeias perdidas no meio da serra, há uma necessidade intrinseca e inevitável de sorrir, de apontar para dentro da cozinha de olhar para todos eles e aplaudir (ok, esta parte não fiz, mas tive que abanar a cabeça e falar). Um hino inteiro que apesar da trufa se revela muito, muito nacional.
Novo copo, passamos para um Riesling cujo nome não decorei.
A maçã de quatro modos. Uma pele quase confitada, um interior granizado. De desgaste rápido a necessitar de ser consumida com rapidez. Não é doce em demasia, faz a ponte perfeita entre os salgados e os doces.
Último copo, para terminar na região, com um Porto Kopke 10 anos.
Este acompanha algo de facto mais típico a Norte, e muito nesta altura do ano: a rabanada. Um cubo gigante de rabanada. Crocante por fora, forte com mel, um interior húmido, cremoso nalguns pontos, uma delícia de sobemesa, acompanhada por gelado de gorgonzola. Não se comem coisas destas muitas vezes, mas quando existem ainda bem que conseguem ser tão bem conseguidas.
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Na aproximação o Euskalduna Studio é um restaurante japonês. Pequena fachada, algum granito, ensombramento meio para baixo deixando ver apenas uma tira, onde um pouco de decoração da época dá a sua nota. Placa em madeira aos nível dos olhos, com gravação a branco. Singela, natural, discreta.
Porta fechada sem campainha. O primeiro segredo da casa. Lembrando uma grande artista: "amor, amor, desliga a televisão, liga-me antes a mim amor, basta carregar no botão".
Porta aberta mas não escancarada o primeiro sorriso da noite. Reserva cedo os primeiros a chegar. Uma ampla (ter aqui noção de que amplo é tudo ligado aos 50m2 da sala/cozinha) parede do lado direito, atravessa a totalidade da sala. Serve simultaneamente de mostruário de vinhos, mas também de biblioteca ligada à actividade, de "despensa" para os produtos mais apelativos, de estação de criação de Kombutcha.
2 mesas para 4, e um longo balcão com a equipa de branco de um lado, a equipa que come do outro. Mármore. Um gigante bloco de mármores talhado para servir. Nas costas do fogo, um padrão branco em azulejo, minimalista, mas que no meio de tanta madeira e iluminação amarela, acaba por ter um destaque relativo.
Iluminação muito intimista e confortável, mais do que adequada para o efeito. Nos ouvidos passa XX, porventura um nico acima daquilo que seria o ideal, numa relação que nem sempre é ideal, para quando se come e se fecha os olhos, aumentando ainda mais a concentração sobre aquilo que está a ser servido (e acreditem. Aqui, isto não só pode acontecer, como pode acontecer mais do que uma vez na refeição).
5 homens na frente de loja. Entram e saem do balcão à medida das necessidades. Cada um na sua ilha, mas todos acabam por servir, por vir à mesa, conversar e explicar, comparar e tecer considerações, sem receios (vá, o mais novo ainda sorri muito timidamente, o segundo na hierarquia parece preferir amplamente estar do outro lado da barreira). Com 16 a comer, conversar torna-se fácil e quase obrigatório. Algo que no Norte é também bastante mais fácil.
Cabe a quem está a comer, no entanto, fazer a pergunta, porque eles não possuem grande pejo em falar raladores de katsuoboshi, fermentação de kombutcha, sous-vide, alimentos curados, nixtamalização e outras coisas!
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Mantenham-se por favor. Aquilo que estão a fazer é dignificante, e nem toda a gente o vai compreender. Acontece a quem desbrava novos territórios.
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#zomato50 #sooninildefonso #portofinedining #ovocru
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