“500”
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De vez em quando somos surpreendidos. E ser surpreendido é das coisas que de facto permitem insistir e querer mais, querer descobrir, querer ver, saber e provar mais.
A ida à Cave23, surgiu a pretexto de um jantar a dois. Um singelo jantar a dois de índole romântica, de prazer puro numa bonita localização com vista sobre a cidade. Ou então não, que é uma cave.
Não tinha lido muito. Não tinha a história da Ana Moura, da sua formação fora da área e do seguimento do seu desejo. Da sua juventude e ânimo próprio, do seu desejo de preferir ficar dentro da cozinha em vez de conversar com os clientes. Com os poucos e sortudos clientes que possuem a oportunidade de conseguir lá entrar (é pequeno de facto). Não tinha sequer a certeza sobre a localização exacta, naquela zona tão bonita que é o Torel.
E por tudo isto, incertos, lá fomos, à descoberta e ao entretenimento. Depois do Loco (e num nível completamente distinto, o Cave23, está muito mas muito bem posicionado. Mesmo que seja numa cave.
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(na sala do lado) Um Aperol. Nunca um jantar mau começou por um Aperol. A não ser que não se goste de bitters, e nesse caso começa mal, mas por opção própria. Foi no entanto uma escolha errada. Tivesse eu noção daquilo a que ia, e da forma como trabalham os vinhos (apenas uma vintena de opções), e a coisa teria sido de opção bastante distinta. Também neste sector é difícil de colocar o Cave23 ao nível de outros. As opções escolhidas são sui generis, pouco presentes no mercado, e algumas delas, muito mas muito especiais.
Começa-se com as manteigas de chouriço, coentros, sal negro e brandade de bacalhau, que acompanham com um pão de “compra”. Por compra entenda-se que eles assumem que não o fazem lá dentro, que não existe essa capacidade. Ainda assim muito, muito boa a qualidade de fermentação com massa mãe, húmido e denso, guloso de sal até mais não. A correr o risco de querer acompanhar uma refeição inteira, quando isso não é o mais indicado.
Seguiu-se a Sopa de alho, com gema escondida e chips de alho. Um singelo caldo, espesso e denso. sobre uma gema lá por baixo que a seguir emulsiona o mesmo caldo, umas partes crocantes de alho. É razoavelmente simples. É também bem executado. Eventualmente não colherá o favoritismo (embora seja dócil), de parte dos consumidores, estrangeiros, pela presença. Acompanha Vale das Éguas, entrada de gama da Herdade do Cebolal para quem não aprecia fruta. É que começa a ser uma chatice fruta em tudo.
A seguir veio a Perdiz. Se no primeiro a coisa tinha sido: é uma sopa com bastante sabor, mas é sopa, aqui a caça é outra. Ignoro se ritualmente sacrificada e com o seu sangue devidamente removido até a proteína começar lentamente a ceder, mas que boa que estava. Conquistado logo ao segundo prato, quando ainda nem sabia quantos mais havia para subir. Uma subida de coragem diga-se porque a ordem também não era a mais comum. Veio com Caios, também da mesma herdade, agora já mais uniforme e composto, mais a fazer o jeito para o prato.
Continuou-se com o Camarão, crú de grande dimensão, uma espuma ácida altamente contrastante, um crocante doce, na conjugação daquela coisa aparentemente inovadora que é o umami. As cores aqui, talvez não sejam as mais apetecíveis ou evidentes, mas isso concentra a atenção sobre o sabor, o que é altamente bemvindo. Camarão por definição, não é a proteína com mais sabor à face da terra. Acompanhou com Foz Torto, de Sandra Tavares da Silva, uma das 7 pródigas de Portugal, um douro vinhas velhas, elegante, fresco e sobretudo apropriado.
Bacalhau como um dos pontos altos, numa preparação muito pouco habitual. Um filete (nada comum), fresco e tenro, mas que aparentava alguns dos sabores da salga. Segredos de cozinha, decerto. Revestido a um fino crocante, uma areia na realidade, com duas cores e sabores, como se o panado ainda não tivesse ido à fritadeira. Aqui a escolha recaiu sobre o Arundel T&T, do produtor de presunto de vaca mais famoso do país. E o único também. A complexidade é extrema, os sabores são dificeis de destrinçar a escolha continua a ser bastante apropriada.
De Leitão trata o capítulo final dos salgados. Carne da moda, cozinhada até ao extremo da completa submissão do colagénio existente, tostado depois para obtenção da textura dupla. O segredo deste, variou entre a banha corada ralada que lentamente se foi fundindo de novo, o ramalhete habilidoso de coentros, que rapidamente lavam a língua entre a quantidade ultra generosa de gordura presente, e a presença da pimenta, em modo molho mais denso, dentro de outro molho. Óptimos contrastes, acompanhados de Joaquim Arnaut Moscatel DOC. Sushi fica genial com Madeira Boal, leitão não seria a combinação mais óbvia com Moscatel, mas ainda bem que o resolveram propor.
Começam os doces, com uma espécie em vias de extinção, um Mini-Suzette, cujo perfume citrino inundou a sala pelo caminho ainda antes de chegar à mesa. Duas dobras, quatro folhas, um círculo triangulado de sabor, espessura contida, cremosidade fervida no molho emparelhado com Quinta das Tecedeiras, talvez a comunhão menos conseguida da refeição, ou apenas uma rejeição leve, pessoal e temporária de vinhos fortificados daquela zona.
Algodão doce com ananás (ou gengibre? já não recordo plenamente) confitado. A piada de ter algo que rapidamente muda de volume, cujo sabor se intensifica, com uma quantidade de viciante açucar, faz deste conjunto um jogo de e para crianças independentemente de terem 5 ou 50. Todos nos conseguimos divertir.
Por último um pedaço de mousse com crocante de chocolate e cereais, acompanhado de Casal Santa Maria Colheita Tardia. As diversas texturas a colaborarem, mas sobretudo o sabor. A mousse é magnífica. Mas para lá de boa. Compete facilmente no TOP10 de mousses da cidade. Poderia ser servida em modo take-away à saída do elevador do Lavra, e seria um sucesso retumbante.
Chá de hortelã fresca para a sossega, acompanhado de umas quantas gentilezas sob a forma de madalena, sonho, trufa e biscoito. Todos frescos, todos perfeitos (fazer sonhos daquele tamanho é de uma vontade irredutível, só pode), a não querer sair da sala, apesar de ela, como de costume, já estar mais do que vazia!
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Mesmo ali ao canto, entre duas casas com século e meio, fica um pequeno hotel de luxo e charme. A entrada, qual propriedade mágica é pelo portão de ferro que lhes está pelo meio, por um pequeno caminho, em gravilha tão incomum na cidade, até chegar a um pequeno páteo altaneiro, por entre árvores também elas centenárias, com uma expectativa de visão ali na amurada lá para baixo, para a cidade. Essa visão não é tácita, porque uma varanda se impõe a um nível ligeiramente superior. Do restaurante também nem vê-lo. Está enterrado pois claro, que diz que é uma cave,
Para o bar o caminho nem sequer é o mesmo. Já dentro do Hotel, uma sala serve esse propósito, com proporções estranhas para os dia de hoje, com mais altura do que largura. Um sítio à antiga, quem quiser conversar com o barman ele acede, quem quiser conversar consigo mesmo, também o consegue fazer, que até tem leitura para companhia se assim o desejar.
De novo para o restaurante (a noite ainda por cima estava de chuva e a necessidade de guarda-chuva era evidente entre zonas exteriores. Escadas abaixo, e entramos no cubo enterrado. Dos pilares revestidos a corten, a sensação de enclausuramento é pouca. A seguir, quando lhe adicionamos uma laje de betão por cima, a coisa pia mais fina. Apenas os bambus são visíveis do lado de fora, e o ambiente colonial contemporâneo, é temperado pela parede de garrafas de fundo.
Parco em decoração, mas tão grande na comida.
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Vai falando com os clientes Ana! Eles apreciam o teu trabalho e aquilo que lhes estás a proporcionar.
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