Na Buraca, onde a cidade se cruza com a província, Manuel F. Caldeira revisitou uma das catedrais gastronómicas da sua meninice. No Zé Pinto, deu de caras com um entrecosto com arroz de feijão que o levou a exclamar “porreiro, pá!”.
Estava eu e um grupo de convivas na Buraca, quando decidimos ir ao Zé Pinto. Parece um mau começo de uma má anedota, mas é um bom começo de uma óptima refeição. Um dos baluartes da restauração “genuína” (aka xungó-naice), em conjunto com o vizinho David da Buraca, o Zé é um restaurante fixe. Não exige traje a rigor, os talheres presentes servem todas as (previsíveis) necessidades instrumentais e, na dúvida, um só tipo de copo vai do ice-tea ao vinho frisante.
Não que seja fundamental para apreciar a experiência em todo o seu esplendor, mas demos espaço ao disclaimer - o Zé Pinto é simpatizante. Da causa benfiquista, em todo o seu esplendor. A devoção é clara nos quadros e galhardetes que decoram as várias salas, e mais aguda se o visitarmos em dia de jogo, sobretudo clássico ou derby. Dita a minha experiência de anos passados que tanto lagartos como dragões são aqui mais do que bem-vindos, desde que comunguem da mesma religião: o sacrossanto entrecosto com arroz de feijão, que tanto faz por afamar (e bem) a casa.
Recuemos até ao princípio (do fim). A Buraca, entalada entre o final de Benfica, o início da Amadora, e o eternamente engarrafado Estádio do Pina Manique, é lar de vários comedouros. Destes, alguns alcançaram o estatuto de restaurante. Destes, poucos chegam ao epíteto “gastronómico”, e só um, por razões evidentes, alcança o nível de Catedral. Passada a traumática experiência de estacionamento, entramos no renovado espaço. Profundamente remodelado há menos de um ano, desapareceram as grades de cerveja empilhadas à entrada, tendo o bege das paredes sido substituído por um amarelo claro. Acastanhado. O projecto arquitectónico é o equivalente em alvenaria e zinco às calças que nos ficavam curtas e às quais as nossas ricas mãezinhas iam descendo a baínha. A uma primeira sala anexou-se outra, e outra, e ainda outra, e mais uma, fazendo lembrar uma outra obra prima da engenharia, também ela pela obra e graça de um Zé, ali para os lados da Covilhã (a um domingo, claro está).
Desconfortavelmente instalados, somos presenteados com um naco de pão inteiro. Poderá ter nascido aqui a expressão “partir pão”, e justamente. A acompanhar, um queijo de vaca grosseiramente cortado a fazer o que todos os couverts deviam fazer: abrir, vorazmente, o apetite. A carta é simples, e reconfortante. Dos pratos do dia, provou-se o memorável pernil no forno, o razoável coelho à caçador, a sofrível carne de porco à alentejana e, elás, o entrecosto (na realidade, entremeada, mas who cares) com arroz de feijão, reveladores, todos eles, de mestria na grelha, e mão certeira no tacho. No que à carta de vinhos diz respeito, a oferta é ampla: há vários tipos de bag-in-a-box, do tinto ao branco, passando pelo frisante.
Poderá haver quem chegue às sobremesas (ele há pessoas para tudo), e a esses corajosos recomendo um mini jogo do “stop”. É ouvir a ladainha, dizer “stop” onde o apetite ditar e, à partida, a coisa irá correr (mais ou menos) bem. Tudo isto, sem jeitinho, por 15€/pessoa.
A não perder, mesmo: o arroz de feijão, malandro como só ele (acompanhado da proteína que vos aprouver, com o entrecosto/entremeada à cabeça) e as batatas fritas caseiras, sacaninhas, como lhes chamava o meu avô Manuel. A malícia que atravessa ambos os acompanhamentos é mais do que intencional. Afinal, para o bem e para o mal, é de um Zé que se trata.
Nota: texto originalmente publicado na Time Out Lisboa.
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