Farto de tabernas modernas, tascas irónicas, experiências sensoriais e barretes demais, Manuel F. Caldeira encontrou no Águas Livres o que há tanto procurava: um (muito bom) restaurante.
Em nome da verdade jornalística, para além de um restaurante, sem prefixos nem sufixos, muito acima da média, neste Águas Livres encontrei também umas das melhores pataniscas da capital, um correspondente em Moscovo e um dos mais talentosos humoristas da nossa praça. Dos três, só um consta da ementa, mas todos eles servem para atestar da indubitável qualidade deste singelo, chamemos-lhe, restaurante.
Muito mal escondido no canto de um dos mais encantadores recantos de Lisboa, entre o Jardim das Amoreiras e o Aqueduto que seguramente terá inspirado o nome deste, enfim, restaurante, o Águas Livres é um espaço despretensioso, sem caganças, que tem uma, e uma só preocupação: servir boa comida a um preço justo. Sem decoração by, carta criada por ou consultoria de. Vamos, então, dar ao dente.
Pondo os molares à prova, chega à mesa um cesto de torradas caseiras, finas como folhas de papel, a pedinchar a atenção da manteiga (de pacote, claro) que aterrou na mesa, juntamente com um pires de azeitonas. Enquanto damos de comer à fome, passamos os olhos pela ementa, desenhada pelo Word, em parceria com a HP Deskjet 5200. Dividida, heresia das heresias, em (apenas) pratos do dia, peixe e carne, fomos ao mar e à terra.
Seria injusto não começar pela jóia da coroa, as justamente afamadas pataniscas. Generosas no fiel amigo (esta coisa de o cão ser o melhor amigo do homem, sobrando ao bacalhau o epíteto de mais fiel sempre me fez espécie), perfeitas na fritura, húmidas sem ser gordurosas, e ligeiramente adocicadas, graças ao ponto no qual a cebola foi estrugida. Fiéis que são, também aqui as pataniscas não podiam deixar de andar de braço dado com um guloso arroz de feijão, puxado no refogado, a contrastar com a leveza do companheiro do lado.
A mão certeira na cozinha não se esgota por aqui. Provaram-se, em várias ocasiões, as bochechas de porco estufadas, de tempero delicado, de comer à colher, o arroz de pato, escuro como breu como se quer, responsável por encher este, digamos, restaurante todas as sextas-feiras (reserva obrigatória), o costoletão de vitela, boa carne, razoavelmente grelhada (a pedir mais calor, e sobretudo mais carvão), sublimes batatas fritas aos palitos, e até filetes de peixe galo ao vapor (?), com um molho de leite de côco, gengibre e pimentos, uma carta fora (mas dentro) do baralho a piscar o olho a outras geografias. Em comum, a mestria na confecção, a conta, peso e medida e o bastas vezes esquecido sabor.
Se o estimado leitor fora eu, e eu fora o estimado leitor, neste momento estaria eu, portanto o estimado leitor, a pensar no gato que, garantidamente, aqui há. Aproveitemos a pausa pré-sobremesa para falarmos do felino escondido, já de rabo de fora. O serviço. Muito lento (mais de meia hora à espera da comida), sobretudo neutro e/ou antipático (a não ser com o tal correspondente, e com o dito humorista, ou não fosse esta uma casa portuguesa, com certeza). O ser para fumadores. No século XXI, não faz sentido nenhum ter um restaurante exclusivamente para quem ficou preso no século passado. Felizmente, são poucos os que exercem esse direito, mas quando o fazem, chateia. Despachado que está o cigarro da praxe, regressemos à mesa. Apesar de muito doce (perfeito para gulosos e diabéticos em plena crise de insulina), a tarte de lima gelada é um final de refeição perfeito, sendo que a mousse caseira também colheu “uhhns” e “nham nhams”.
Contas feitas, por 15€/pessoa, no Águas Livres, come-se muitíssimo bem. Como, no fundo, se deveria comer em qualquer, como chamar-lhe, restaurante que se preze.
Nota: texto originalmente publicado na Time Out Lisboa.
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