O nobre. Acho que ouço falar dele há uns 20 anos para cá, ou mais, mas era aquele sítio no nível máximo lá de casa: aniversário de casamento dos meus pais. Ou seja eu, só sonhando. Foi só hoje, e com um desconto do thefork (como se um sítio destes precisasse, mas maravilha) que se reservou mesa.
Não me queria alongar muito, que acho que a nota fala por si: mas não me lixem, um sítio destes a ser todos os dias como foi hoje, só não tem estrela michelin porque há pacóvios que não sabem valorizar cozinha portuguesa feita desta forma. Para mim, o que comi hoje, é o topo máximo de qualidade em termos de comida portuguesa que se pode pedir. É o pináculo, é a melhor forma de combinar ingredientes que este escriba conhece desde que a mãe o pariu.
Comemos o presunto que parecia manteiga (caro sim) uma broa igual às da terra da minha mãe, umas torradas, e um azeite de primeiríssima classe, em que só me apetecia lamber os átomos espalhados na taça. O vinho branco que bebemos era bem bom igualmente, e a sopa de santola é aquela comida de conforto equilibrada até ao tutano, e com aquele toque na barriga que parece uma massagem à alma, ou pelo menos é como eu a concebo. O equilíbrio da sopa era extraordinário, questiono quanto tempo a senhora Justa Nobre andou de volta dos tachos para fazer uma receita daquelas.
Fomos para a recomendação do empregado: Robalo com molho e ameijoas à bulhão pato, puré de batata, brócolos e uns...brotos(?) é capaz é. Não sei. Mas só os brócolos devem ter sido os melhores que já comi. Luminosos e estaladiços, o elemento mais crocante daquele prato, a contrastar com o cremoso do puré e a textura intermédia daquele robalo, que ainda cantava quando entrou na minha boca. Claro, nada disto era sabor novo para mim. Mas a forma em como tudo estava concebido e depois superiormente executado, deixou-me quase emocionado.
No fundo alguma da minha vida estava ali. Os almoços em casas das avós, a comida em casa da mãe mesmo quando ela quer tudo menos cozinhar, as refeições onde o meu pai desviava 20 quilómetros porque há ali um restaurante que o guia diz que é bueda bom. E o simples prazer de comer, de levar as garfadas à boca, sorrir quando chegava à minha avó e o cheiro do bacalhau com natas ia para a casa toda. Esse prazer de comer, e de comer em família veio-me à cabeça enquanto lentamente comia este peixe. Há toda uma referência no palato que vem das nossas memórias, enquanto o nosso crescimento, maturação e envelhecimento foi naturalmente desbravando aqueles sabores. E parece que estarefeição foi no fundo uma súmula de tudo isso.
Por isso é que o pudim do abade felizmente me lembrou um de Paredes de Coura. E a laranja meio amarga cortava maravilhosamente o doce a mais do pudim. Pudim de abade de priscos é muito provavelmente o meu doce conventual favorito. Fazê-lo assim, devia dar direito a estrela, já, imediatamente.
Atendimento: gostei de todos os empregados que nos serviram, prestáveis e simpáticos sem exagerar. Espero que o salário seja porreiro(restauração é sempre difícil eu sei), porque eles merecem-no, isto achei eu. E depois vem o motivo de dar cinco estrelas: o senhor Nobre. Não foi muitas vezes à mesa ter connosco (nunca nos tinha visto nem pintados de azul, como é óbvio), mas veio as suficientes para no fim de tudo pedir aos empregados nos dar dois copos de Porto à pala, cuja garrafa tinha a assinatura de sua esposa - e que achámos óptimo. E foi esse o motivo da refeição ter começado pelas oito e só sairmos do restaurante às onze e vinte.
Sim, eu achei um templo da nossa gastronomia. Mas é mais que isso: é cozinha portuguesa que se extravasa a si própria. Que salta os muros, que não tem vergonha de dizer o que é, porque sabe que é óptima, que se sente segura de si e tem orgulho e gosto de se mostrar. Porque a mestria a chegar a todos estes equilíbrios, o trabalho para o aperfeiçoamento das receitas, é igual ao do povo das estrelas. Só a matriz é que não se altera. Mas acho muito difícil alguém vir ao Nobre e não perceber um bocadinho daquilo que somos feitos.
Porque os pratos não carregavam só comida, mas também um bocado das nossas vidas.
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