Manuel F. Caldeira entrou numa sala de condomínio em Linda-a-Velha e saiu de um dos melhores restaurantes de Lisboa e (sobretudo) arredores. Tudo por causa de um cozido à portuguesa… e unicórnios.
À primeira vista (e visita), o Farol da Torre traz à lembrança a (injustamente pouco célebre) expressão "a mosca no cocó do cavalo do bandido". Trata-se de um espaço digno das mais fellinianas reuniões de condomínio - um quadrado de 150 m2, tectos baixos, e uma acústica de fazer inveja ao Meo Arena - inserido numa das mais obtusas zonas de escritórios naquele que é um dos menos charmosos subúrbios de Lisboa. A mosca. No cocó. Do cavalo. Pois. Só que entretanto veio para a mesa o cozido à portuguesa, e lá se foi a metáfora equídea.
Ainda de quatro, recordo que nos dias que correm, e com o recente encerramento do Painel de Alcântara, encontrar um bom cozido é tão difícil como dar de caras com um unicórnio. Difícil, não impossível. O cozido à portuguesa, o mais complexamente simples prato da gastronomia lusa, depende, apenas e só, de uma criteriosa selecção dos ingredientes. Ora, no cozido do Farol, nada é deixado ao acaso. As carnes e enchidos vêm do Minho, escolhidos a dedo pelo patriarca da casa. Negócio familiar que é, o Farol da Torre nasceu há uma vintena de anos ali para os lados de Algés, tendo ganho agora uma segunda vida pelas mãos da descendência. Dizia eu, os enchidos exemplares, as couves, cenoura e nabo gulosos, o arroz como sempre deveria ser (com um chouriço de sangue desfeito a salpicar os bagos), e a jóia da coroa, o chifre em espiral do unicórnio, as carnes fumadas. Aqui, tudo o que é porco (entremeada, entrecosto, orelha, chispe) passa pelo fumeiro, como se de um enchido se tratasse, fazendo lembrar a carne de sol da feijoada brasileira - mas infinitamente melhor.
Nem só de cozido vive um homem (o porquê ainda está por explicar, mas enfim), até porque aqui só o vai encontrar às quintas-feiras (reserva obrigatória). Mas a mão na cozinha não se fica por aqui. Outro dos ex-líbris da casa, o sarapatel de javali, está disponível de segunda a sábado, e merece uma visita só por si. Uma reinterpretação da tradicional receita, que habitualmente recorre ao cabrito ou borrego e suas miudezas, este javali em vinha d’alhos, vinho verde tinto e sangue coagulado não é para todos. Mas para quem é, é de comer e chorar por mais (metaforicamente, um homem só chora metaforicamente).
Aviado que estava o javali (e o veado, que se provou, e comprovou ser muitíssimo bem tratado - aliás, como toda a caça que vai aparecendo na ementa), ainda nos atirámos a um entrecosto de vitela branca no forno, com migas de feijão frade, um absurdo de sabor e mestria. Aliás, o conhecimento acumulado na cozinha transpira (metaforicamente, mais uma vez) para todos os pratos, desde as singelas batatas fritas às rodelas (fritas na hora, finas como uma folha de papel, sal no ponto), ao arroz de tomate, mais malandro que uma ópera do Chico, passando pelas migas, um acidente cardiovascular à espera de acontecer.
Minhoto que é, nesta altura do ano não podia faltar a lampreia (não provada) e o vinho verde tinto em malga de cerâmica (provado e aprovado). A tentação seria saltar as sobremesas (sendo que qualquer actividade física, neste ponto, é clinicamente desaconselhável), mas não o faça. O bolo de chocolate com frutos vermelhos, à la pavlova, e o cheesecake à americana (não, senhores, cheesecake não é philadelphia com leite condensado) valem a pena o sacrifício - e a sacrossanta sesta que, inevitavelmente, se seguirá.
Nota: texto originalmente publicado na Time Out Lisboa.
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